Movimentos sociais, como os de combate ao assédio sexual e à discriminação, impulsionam agendas corporativas, diz Carolina Bueno, diretora de Riscos e Compliance do Grupo Globo
O #MeToo foi um marco para a indústria de entretenimento e mídia, avalia a advogada Carolina Bueno Junqueira, diretora de Riscos e Compliance do Grupo Globo. O movimento, que completa seis anos este mês, combate o assédio e a agressão sexual. Ele surgiu com o apelo da atriz americana Alyssa Milano para mulheres vítimas de assédio compartilharem a hashtag, na esteira de denúncias contra o produtor de cinema Harvey Weinstein.
Isso levou a mídia e outras indústrias a instaurarem “controles e práticas para enfrentar questões relacionadas ao assédio”, diz Carolina. Os movimentos sociais, explica, moldam a forma como as empresas atuam para prevenir e tratar casos de abusos e irregularidades, da corrupção ao assédio.
Os desafios são enormes, e a executiva — com uma carreira dedicada ao compliance, antes na Ambev — frisa que é preciso transformar a cultura organizacional para não ficar “enxugando gelo”. O ponto inegociável, diz, é a privacidade, o sigilo em torno de casos reportados via ouvidoria. Daí o silêncio sobre denúncias e decisões envolvendo nomes da casa, famosos ou não.
Quanto à pressão das redes sociais, Carolina ressalta que a empresa não fala “com audiências selecionadas por algoritmos”, mas com toda a sociedade.
Do que trata o compliance?
O compliance é uma disciplina relativamente nova no Brasil, muito associada a áreas jurídicas, mas que nos últimos anos foi ganhando mais autonomia. Hoje é muito mais abrangente. O papel do compliance corporativo é fazer com que as regras da empresa sejam cumpridas em consonância com regulamentos legais, mas em alguns casos extrapolando regras legais.
As empresas podem definir regras, por exemplo, sobre conflitos de interesse e comportamento. E podem tratar de temas que não são criminalizados, mas que dentro da empresa não são aceitos. Embora esteja conectado com outras áreas, seja multidisciplinar, o compliance não tem o papel de ocupar o espaço da gestão ou do RH. Ao combater a discriminação, não tem o papel de ativismo e militância. A gente tem que cumprir a regra da empresa de maneira objetiva, pragmática e transversal.
Como isso se dá na prática?
Tem muito a ver com a estrutura de governança. Precisa ter uma atuação independente, autonomia para tomar decisões e fazer recomendações à gestão. Demanda um pacto com a alta liderança para que essa agenda seja, de fato, levada a sério e implementada.
São feitos cursos, treinamentos, mas a gente precisa se posicionar através de uma presença muito direta, prática e humana. E ter um sistema com medidas disciplinares ou de mitigação de problemas e riscos, se houver violação das regras da empresa.
Depois do #MeToo, as denúncias aumentaram?
O que chega ao compliance é um sintoma do que a sociedade está pedindo. O compliance começou no Brasil quando existia um clamor público muito grande por combate à corrupção. A lei anticorrupção foi criada a partir disso, de movimentos sociais pedindo mais controles e que as empresas fossem mais transparentes. À medida que os movimentos sociais vão mudando, isso vai intensificando a forma como as empresas olham (para essas demandas) corporativamente.
Casos de assédio, até talvez dez anos atrás, eram às vezes tratados pela própria gestão, pelo RH. Não existia um tratamento mais especializado. Então, o #MeToo foi um grande marco para a indústria de entretenimento e mídia, principalmente. Mas também para que outras indústrias olhassem para essas questões e entendessem que precisariam ter controles e práticas para enfrentar o assédio.
Outros movimentos trazem outras mudanças. Com o #BlackLivesMatter nos EUA, seus desdobramentos são as pessoas querendo ser mais respeitadas em todas as esferas, inclusive nas empresas, em questões ligadas à discriminação. Os movimentos sociais são muito importantes para impulsionar agendas corporativas.
E as empresas estão se ajustando?
Se não existe uma mudança da cultura de comportamento nas empresas, ainda que você tenha um sistema efetivo de compliance, o efeito desse trabalho vai ser mais de enxugar gelo. Tem que ser um trabalho transversal, multidisciplinar. É preciso que os agentes assumam pactos para mudança, porque compliance não é uma área que vai resolver todos os problemas.
Se estamos falando de ter mais respeito às mulheres no ambiente de trabalho, é fundamental que haja mais diversidade nesse ambiente. Se falamos de políticas não discriminatórias, como as empresas estão tratando a inclusão de pessoas de recortes diferentes em seus ambientes? Há uma série de ligações que precisam ser feitas para que o trabalho renda frutos e seja perene, e não trate de casos isolados, porque eles vão voltar a acontecer.
O #MeToo se ajustou ao Brasil?
É importante que as regras sejam claras para aquela empresa. Existem empresas em que o relacionamento consensual entre colegas de trabalho não é uma violação à regra. São dicotomias que são postas: o que é flerte, o que é abuso, o que é consenso, qual é o entendimento do que é consenso a partir de desequilíbrio de poder.
A análise dos casos de assédio é muito complexa, transcende questões técnicas e jurídicas, porque existem questões humanas comportamentais que precisam ser avaliadas em contextos específicos. Códigos sociais importam para o entendimento do que é ou não é permitido, mas o balizador é a regra da empresa.
Coibir práticas como o assédio numa empresa de grande diversidade é mais desafiador?
Eu acho essa parte do trabalho superinteressante na Globo, porque essa pluralidade de pensamento, de perfis, de diversidade étnico-racial, traz questões de vanguarda, comportamentais, que não necessariamente foram enfrentadas por outras empresas. A pluralidade e a diversidade de pensamento trazem mais desafios, mas tornam o trabalho mais interessante, porque fazem com que a gente debata e se aprofunde na complexidade dessas questões.
Para isso, é muito importante não ter fórmulas prontas. E ter uma equipe muito diversa para avaliar os assuntos. Temos uma comissão de ética que debate ativamente os assuntos e procura eliminar os nossos próprios vieses na avaliação dos casos, para ter perspectivas diferentes sobre as questões. Elas estão ficando cada vez mais complexas ao falarmos de interseccionalidade.
Às vezes, sobrepõem-se questões raciais e comportamentais. E é preciso acolher quem se sente vítima, presumir que quem é relatado pode ser inocente, não estimular o cancelamento das pessoas envolvidas e respeitar a privacidade.
Por que a opção pelo sigilo sobre os casos, mesmo os que se tornam públicos?
A dinâmica das redes sociais incendeia as discussões, mas a gente tem um compromisso sério com o trabalho que é feito. E não é um trabalho para jogar para torcida. A gente não fala com audiências que são selecionadas por algoritmos, a gente fala com toda a sociedade. É comum que, em determinadas decisões, a percepção de certas situações não agrade a todo mundo.
E as pessoas partem, muitas vezes, para um entendimento com premissas equivocadas, porque não têm acesso a todas as informações. Mas entendemos que é o papel do compliance, mesmo que a empresa de alguma forma seja prejudicada no julgamento público. Nosso compromisso é tomar a decisão correta, com base nas regras estabelecidas, preservando a privacidade das pessoas e a confidencialidade. No longo prazo, isso se paga, e estabelece essa credibilidade do compliance.
Daí a decisão de não explicar dispensas de profissionais?
Exato. A maioria das pessoas que nos procuram conta com o sigilo e a discrição das investigações, e isso é muito importante para que o sistema funcione.
Fonte: O GLOBO
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